Giancarlo Carvalho em foto de Alexandre Eckert

Feliz Cidade
Giancarlo Carvalho

No meio da rua meu corpo prostrado agoniza, cingido por paredes e edifícios que se acotovelam à volta como carpideiras teimosas, asfixiantes em seus véus de poucos tons. A cidade trespassa, viola minha intimidade e corta meus pulsos com seus carros velozes, seus ônibus grávidos de pessoas sem sorriso, suadas, querendo só chegar. Nunca chega. Meu corpo é asfalto, recebe a chuva teimosa; meu rosto é impassível, reflete a lua redonda, marchetada no céu de breu grave. Nas minhas veias, canais subterrâneos escoam sangue e podridão, urina, fezes, luxo tóxico jogado fora com desdém, comida descartada, sentimentos defasados. Pelos ralos, fogem sonhos e oportunidades, desembocando nos bueiros e nas fissuras da metrópole. Sinto nas entranhas, na carne, nos orifícios, em cada fio de cabelo. Permaneço deitado, culpado, esperando um final feliz.

A cidade me enxerga, cheira e corrompe, me impregna de cimento, aço e frustração. Pelas laterais, paralelas avenidas, ouço gritos de agonia, depressão, de morte e de vontade de viver. Sinto o bafo quente das pessoas vociferando bobagens, fuzilando impropérios na cara do lado, do transeunte, da mulher de belo corpo, do homem abraçado a outro, do pedinte em cuja mão estendida fome é tatuagem, e ele pede socorro e um pedaço de pão. Só pão, por favor, água eu bebo da enxurrada. Mas ninguém sente estes famintos, desempregados, estes reles que trafegam por becos e ruas e calçadas sujas de abandono. Nem eles se sentem mais, acho. Ávidos, comem os restos destes parvos que se desperdiçam e atiram no lixo suas vidinhas mortas, medíocres e sem futuro. São balas perdidas, sem alvo e sem norte, tão preocupados com a vida alheia que lhes causa inveja, nojo ou ereção. E, diante do mal dito e do mal feito, se ajoelham nas missas de domingo esperando mil perdões, enquanto depositam moedas no bolso de um deus manipulador. Talvez arrisquem orações. Talvez não.

Pelo meu corpo dolorido trafegam também veículos lentos e ônibus estéreis, barulhentos, cuspindo gás carbônico fétido e fluido, que engasga e provoca vômito. Drogas, cenas e odores sintéticos, películas e música, sons diversos, cores sortidas de blues branco e negro, cantos de pneus, jazz improvisado, falsos orgasmos. Muda o tom! grita a cidade num átimo de lucidez. Levante, caia fora, troque o emprego estapafúrdio, fuja dos reflexos e luzes vermelhas destes bordéis diários, onde cafetões, putas e michês dissimulados te comem aos poucos; corra pelo parque, evite os bares de esquina que te bebem até a última gota, feche a conta. Ouça a cidade que te enxerga, finja que é simples assim.

Sob a marquise ouço e vejo tudo. A chuva que morre, os devaneios que gritam, meu corpo que se levanta. Neste asfalto não tem beijo, nem final feliz, nem carona. Vou de aplicativo: não falo, nem ele; não ouço, nem ele. Entro, tiro a roupa, evacuo, tomo banho, frito um ovo, ligo a tevê, viro lágrimas e me desligo. Amanhã é outro dia, a chuva pode voltar, a fila vai aumentar, o bar abrirá. Mãos serão estendidas, pedindo, talvez doando.

A cidade espera. Nas ruas cheias de corpos, talvez sejam feitas orações. Talvez não.

 

Crônica escrita na Oficina MOSAICO – Setembro/2019

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