Rubem Penz em foto de Gabriel Munhoz

Polaroid

Rubem Penz

Eu sei. Havia prometido um buquê por semana de flores naturais, manter a grama aparadinha, ter o entorno conservado, cuidar para que o seu pequeno santuário estivesse eternamente impecável. Eu sei, eu sei.

É que nem tudo está saindo conforme os planos, sabe? As coisas ficaram estranhas desde que descobri a caixa de sapatos no alto do armário da garagem. Aquelas fotos. Os bilhetes de entrada dos shows. Tíquetes de trem de Paris para Toulouse – você nunca me disse que conheceu o sul da França. E a agenda de 1988.

Pode parecer doideira, paranoia. E acho mesmo que é. O problema nem é você ter uma vida antes de nós. Eu também tive, claro. Todo mundo teve. Todo mundo que já havia nascido, né? Mas aquela caixa de sapatos. As fotos. Era sua a Polaroid? Quando nos conhecemos não havia Polaroid nenhuma. Era de quem batia as fotos? Aí que pirei, sabe? Pensando em quem bateu as fotos.

E todas as entradas estão aos pares, presinhas com mini clipes. Bob Dylan, Sting, Jethro Tull, Genesis, Jean-Luc Ponty. Bethânia, Milton, Gil, Paulinho da Viola. Pavarotti ao vivo em Toulouse! Quem quer que estivesse contigo, reconheço, tinha bom gosto. Ou devo dizer “tem bom gosto”? E dinheiro. Pelas datas posso adiantar que eu não poderia comprar esses ingressos. Você podia? Era tudo por convite? Maldita caixa…

Eu sei, eu sei: como cobrar de você transparência? Seria paranoia total se não fosse as folhas arrancadas da agenda de 1988. E você guardou só a de 88. E suprimiu os dias 12, 13 e 14 de abril. E nada mais parece relevante – compromissos de trabalho, as provas do pós, 16 aniversários destacados, alguns números de telefone. Tudo normal, menos os três dias rasgados para fora de sua vida. O que aconteceu ali?

Eu sei: há muito desleixo aqui. Trouxe flores, ao menos. Nem sei por que. Não tô legal, se quer saber. Passei grafite no 15 de abril e não é a sua letra. É um poema que fala de flores e de lápide. O problema não é você, sabe. Soou eu.

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