Nara Accorsi em foto de Gabriel Munhoz

Na porta do inferno

Nara Accorsi

Sempre acreditei que entraria por uma porta e lá, encontraria uma luz muito forte que fosse me tirar do sofrimento. Nunca acreditei em milagres; pra mim vida é vida e morte é morte. Não tem lugar para sonhos e muito menos para milagres. Mas agora te vendo debruçado sobre meu corpo inerte, não consigo acreditar no que estou vendo. Não acredito que só no momento da partida sem volta, te vejo chorar. E por mim! Teu soluço alto, tão alto que todos comentam: quanto amor! Eles parecem tão admirados quanto eu. Quantos anos eu te dei de minha vida desde que saí da casa do meu pai. Passei fome, plantei, colhi contigo.  Cozinhei, lavei e cansei.  Não pense que teu choro vai me fazer mudar de ideia, que vai me fazer voltar. Parti para nunca mais. Admiro que tu, Zé, que nunca deixou escapar nada, nem um sorriso, nem um agrado e muito menos uma palavra de amor, agora se derrama em lágrimas? Sei o que se passa na tua cabeça; sei que para ti sempre fui forte, sempre pronta, a tempo e a hora; eu, que nunca me queixei de nada, de repente saio batendo a porta sem ao menos te dar adeus. Vais entender agora que este foi um plano diabólico. Uma vingança. Um jeito, um pouco torto, reconheço, para que ao menos uma vez, repares em mim, mesmo fria, já que morta eu já estava há tempos. Tu matou minha quentura com teu jeito ranzinza; acabou com a alegria azedando minhas palavras. Palavras que nunca tinham resposta. Cansei de perfumar os cabelos com água de cheiro, de botar vestido florido e tu nem me olhar. Sei que fui ficando amarga, bruta, mas sem um afago, que mulher é doce? Nem quando nasceu Ritinha tu me ajudou, me acarinhou. Sofri, gritei e tu, bebias na rua.  Fui morrendo sem perceber até que cheguei aqui, com vestido limpo e novo, a boca pintada, o cabelo cheiroso. Para quê? Agora tu choras. Pode chorar, quero mais é que tu sofras, bem sofrido, doído até te acabar. Se eu for para o Inferno, nem ligo; estou acostumada. Não há de ser pior do que viver ao teu lado. Se eu for para o Paraíso… acho que não consigo entrar. Não mereço ficar ao lado de anjo com cara de santa. Sempre fui pecadora, desde o dia em que tu entrou na minha vida. A raiva contida me apodreceu por dentro. Se Deus existe, eu vou para o Inferno.

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