Mike Hodges por Altino Mayrink

Isto não é um sorvete

Altino Mayrink

Aqui, contemplando a gravura de Mike Rodges, vejo uma ponta de lápis, revoluções de um cérebro, um cogumelo de detonação atômica e, talvez mais marcado, um simples sorvete de casquinha. Meu pensamento se recusa a ficar nas trivialidades.

O menininho que me habita está sempre a buscar brincadeiras, piadinhas, outras formas mais humoradas de representações e de leituras. Esquece-se ele que já sou um tiozão, cinquentenário (ou mais) e vivo filosoficamente em descrença e dúvida. A ciência é mais importante. Viver, é melhor que sonhar, eu sei que o amor é uma coisa boa, onde será que eu já ouvi isso? Não me contento com a gostosa e doce visão.

Olhei com mais apuro e me encantei com a possibilidade de o que vejo não ser mais do que o fruto de uma imaginação fértil e muitas referências anteriores. Bom, isso é a verdadeira expressão da leitura, de textos, de imagens, do mundo. Me povoei das lembranças de outros momentos em que os referenciais e a fabulosa capacidade de imaginar provocaram experiências diversificadas e estonteantes para mim. E viajei.

Alcançar outros tempos, outros lugares, outras pessoas e pensares não exigiram esforço e me deixei levar. Se você não consegue me acompanhar, me desculpe. Se pode, vem comigo. Chegaremos a um tempo que não vivemos mas que conhecemos porque somos inteligentes e temos o conhecimento.

A mente nos reserva as gratitudes. O corpo nos limita aos confortos. Prefiro a angústia da busca que a paz da acomodação (onde foi que já ouvi isso também?) e não me conformo com os limites do corpo. Leio os sentidos imediatos, toco, gosto, cheiro, ouço e vejo, mas não me limito aos dados básicos recebidos. Mesclo todos os sentidos e transformo as sensações. Conheço o final.

As formas impressas nunca são exatamente o que representam. Já disse René Magritte, em 1929, na sua obra mais famosa: Ceci n’est pas une pipe (isso não é um cachimbo). Sorvete, isso não é.

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