Joyce Kitchell por Ronaldo Lucena

Pela mão que alimenta

Ronaldo Lucena

 

Quando acordei na Casa Frade Hospedaje, em Arzúa, eu estava descansado. Uma noite que se pode dizer de luxo, com um quarto e banheiro só para mim. Eu tinha até televisão. Sequer foi ligada. Não queria notícias de outros mundos diferentes do meu. Estavam sendo dias de conversas sérias comigo mesmo, e de descobertas.

Sair da cama confortável, para a penúltima etapa, não foi difícil. Chega um ponto no Caminho que apesar de todas as queixas que o corpo te apresenta, ele pede movimento. É preciso andar, mesmo que em muitos momentos o pensamento peça um freio, uma vagarosidade. Quanto mais reduzem os quilômetros para a chegada na Praça do Obradoiro, cresce um misto de ansiedade por estar chegando, e tristeza por não querer que acabe.

Acordar nesse novo dia ressignificou o meu pertencimento àquele lugar. As ruas e a Plaza Mayor de Arzúa, onde na tarde anterior eu comi a paella do Casqueiros com vinho da região, na sombra das grandes árvores, passaram a pertencer às minhas memórias. Na mesa posta na calçada da Confiteria-Café La Esquina, misturei o cortado às docerias e ao movimento das pessoas e carros diante dos meus olhos, no final da tarde. Naquelas poucas horas de dono da cidade, eu ainda não tinha ideia de que em dois anos eu regressaria.

Porém, com certa magia, tudo isso que vivi nesse lugar passou para outro compartimento em mim, pela manhã. Fez o tempo de recolher os troços e arrumar a mochila, olhar a previsão do tempo, calçar as botas e fechar a porta como se deixasse a chave dentro. Não abre mais.

O barulho da madeira dos degraus da escada, sabe-se lá quanto tempo aguentando pesos naquela antiga morada, denunciaram minha chegada ao térreo. Dos fundos surgiu uma senhora de idade, com olhar de avó, avental de avó, mãos de avó e me convidou a sentar junto a uma das mesas do pequeno salão. Fiquei de frente para a lareira onde objetos literalmente davam ar do tempo à prateleira. No centro um relógio marcando seis e trinta da manhã do dia 21 de setembro de 2017.

Aguardei por uns instantes e o branco da toalha começou a competir com as cores que aquelas mãos foram bordando sobre a mesa. A porcelana era de família, daquelas do enxoval da mãe da mãe da mãe. Bules de leite e de café, xícara, pires e açucareiro. Uma cesta de pães tostados na hora. Uma cumbuquinha com manteiga e outra com geleia. Um pratinho com bolo, outro com presunto e queso gallego. Um terceiro com nozes e uma taça de suco de laranja.

Tudo tinha seu sabor, mas quando o olhar de quem servia encontrou o meu, no foco que as lentes dos óculos de ambos fizeram, a refeição da manhã tomou outros sentidos. Houve uma procura e um reencontro mútuo. Da minha parte, vi as mulheres que me deram a vida, em todas as gerações que me precederam. Estavam nos olhos claros, nas mãos de alimentar, sem cansaços, sem cobranças. O sorriso era de acolhida e de despedida também. Como um aceno dizendo para eu seguir forte em minha caminhada.

 

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