Joyce Kitchell por Baiard Brocker

Desmotivação

Baiard Brocker

Tempinho chato! O inverno parece não fazer questão de ir embora. Ele quer ocupar todo o tempo que o calendário lhe destina. Já estamos em setembro, e a primavera só começa no dia 22. Mas bem que já podia ir dando o ar de sua graça, ou melhor, de seu clima, começando a trazer flores, brotações e uma temperatura mais agradável. Não temos tudo o que queremos, ainda mais se dependermos dos humores da natureza. Ela decide. Ainda bem!

Nesta tarde modorrenta de domingo, gris, úmida e fria tenho a sorte de estar dentro de casa, de poder preparar, se quiser, a mesa para tomar chá, com bolo comprado, já que não me atrevo a esse tipo de exercício culinário. É muito aconchegante sentar à mesa pra tomar chá, de pijama ou enrolado em uma manta, ouvindo o barulho da chuva e vendo seus pingos escorrer pela vidraça. Um simples prazer, embora não trivial em terras tupiniquins, de que é possível desfrutar sem grande esforço. Ao mesmo tempo em que posso usufruir desse conforto, penso, no entanto, naqueles que até podem ter tomar chá, por ser baratinho, mas não têm mesa, cadeira, toalha, xícaras – prefiro chávena para o chá – e, principalmente, não têm teto, casa onde pôr uma mesa e para se abrigar do frio, da chuva, do vento. Basta uma voltinha pelas ruas da cidade, para encontrar muitas pessoas, em sua maioria negros, nessa lamentável condição.

Incrivelmente, conseguimos conviver com esta situação. Assim como, há pouco mais de um século, conviviam com a escravidão, tendo nos negros, gente de carne, ossos e sentimentos como nós, os agentes para preparar a mesa de chá e fazer tudo o mais que o fato de nascer branco e com dinheiro suficiente para comprar um negro pra chamar de seu permitia deixar de fazer o que eles, à força, faziam.

Mesmo com o passar do tempo, não deixamos de ver o outro, que não seja um familiar ou do nosso círculo social, como outro, alguém que não nos diz respeito, sobre quem não sabemos, nem queremos saber, que dores sente. Por mais que avancemos cientifica e tecnologicamente, ainda guardamos marcas de épocas em que nossa natureza egoísta e autocentrada falava mais alto, como se precisássemos continuar a nos defender de ameaças não mais existentes.

Por maior que seja a vontade de receber amigos, afastados pela pandemia, para compartilhar o almoço ou gostoso chá em tarde chuvosa como esta, não dá pra desconsiderar o fato de uma simples mesa de chá e de tantas necessidades básicas não são acessíveis para muitos. Deve-se isso a único e persistente motivo: esses muitos haverem-se habituado a apenas preparar a cena do prazer que o outro usufrui. Pode-se, também, chamar esse motivo de exclusão.

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