Homem caminhando sobre o reflexo – Giancarlo Carvalho em foto de Marcelo Leal

Homem caminhando sobre o reflexo

Dia especial, disseram. Bobagem… Diante do próprio reflexo, Pedro matutava, assoviando um blues rasteiro. Nada demais, insistia, mas se preparou da melhor forma: ajeitou o cabelo ralo e cinza, escovou os dentes quase brancos e esboçou, para si mesmo, uma careta boba, corada, descontraída. Depois, vestiu roupa nova: calça de sarja convicta e uma camisa de azul pretensioso. Tirou etiquetas, contraiu a barriga não tão óbvia, segundo ele, calçou sapatos aprazíveis, desprezou as meias e saiu.

O trajeto seria curto, concretado e descolorido. A despeito disso, Pedro não se sentia destoado. Naquela tarde grisalha, entre passos desapressados, brotaram musgos e memórias. Da infância, dos amigos, meninos e meninas, rosas e azuis, pretos, brancos, amarelos, das algazarras verdes, balbúrdias magenta e peraltices terracota, das tardinhas adentro até os gritos da mãe, fúcsia da vida. Da juventude índigo, suas indecisões verdes e desobediências violeta: o primeiro beijo, ocre, a ressaca vinho, as tristezas sépia, o emprego chumbo, as alegrias lavanda, o cinema rosa púrpura, o sexo âmbar. Pensou em Carmen, vermelha efusiva, frustrada paixão. Não daria certo, enfim: ela era muito pimenta para ele, insosso pastel. Paciência… E veio o ambíguo pantone adulto, a meia-idade marrom, a aposentadoria branca. E ali estava ele, em tons de concórdia, sereno com o silêncio dourado de casa e o barulho cromático das ruas. Uma vida satisfatória, uma paleta profusa. Poderia ser melhor, talvez diferente. Ou, pior, poderia não ter cor. Felizmente, é gota d’água que recebeu luz e virou prisma, um arco bem-feito. Acompanhado das lembranças, Pedro chegou lá.

No fim do concreto, a calçada vira praia. De cores vibrantes e opostas, o cenário é um Van Gogh sem paspatur e moldura, um quadro de colorida inquietação e movimento próprio, onde oceano e céu se tornam um único, amplo e cerúleo horizonte. Sobre tela, os sapatos aprazíveis tocam a areia e afundam na laca rosada. Sete décadas e cinco passos depois, Pedro os retira, sacode e segue. O caminhar lento deixa marcas profundas e efêmeras no entardecer, que são levadas com maturidade pela onda coral. Diante do mar de desmedido anil, Pedro se abaixa, acaricia seu reflexo, e ouve o silêncio.

Lá adiante, no Beira Bar, os amigos vão chegando. Pretos, rosas, brancos, amarelos: os afogueados acenam, Pedro acena de volta. Hoje ele completa mais um ano. Barriga óbvia e cabelo de puro gris? Dane-se. O dia, agora sim especial, virou noite, é criança. E está tudo azul.

Giancarlo Carvalho – 26/11/2019 – Oficina Santa Sede – Módulo Mosaico
Fotografia de: Marcelo Leal

 

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