Maria Amélia Mano em foto de Gabriel Munhoz

Flor de goiabeira

Maria Amélia Mano

Se a gente olha tudo, de um jeito vagaroso, tudo é sagrado.

Hilda Hilst

Pra que a gente não se perca, te presenteio com semente de goiaba amarela de polpa vermelha, fruta de infância, e o rastro da pólvora onde a faísca percorre rápida e brilhante, antecedendo a explosão colorida da tarde: desenho animado. Te lembro, te mostro essa nossa menina de oito anos e esse cheiro de tempo de férias e sábado com gosto de sábado, pão com manteiga bem passada nos dois lados e um barco construído de papel de jornal na grande pia branca da casa nova, pra provar que nossos sonhos povoam todos os lugares que andamos, e que todos os lugares estranhos podem ser nossos e das nossas estórias inventadas. Não há mar possível pra tanto horizonte e nenhum horizonte possível pra tanto mar-amar, tanto criar de menina mergulhadora, astronauta, espadachim. Assim, assim, agora sim, te ofereço a mentira mais bonita de querer acreditar, o redemoinho que levanta poeira, lixo e folhas secas, enverga planta nova nascida. Te dou, agora, a colheita, a pequena goiaba amarela que acariciava enquanto descobria os seios recém-nascidos. Te entrego esse nascer de mulher e sol em primeira quarta-feira de carnaval e primeiro beijo na praça, o olhar que se transforma e se recria, cria estrelinhas, entrelinhas em falhas de céu, falhas no caule da goiabeira, a mesma, aquela, que nossa menina subia, com pele descascada depois de verão, que nem a casca da árvore que ela fazia de nave ou ave. Parece que foi ontem. Então, te recordo esse tempo rápido, tão rápido que nem sempre percebemos quando chega no meio, quando começa a findar. E para tudo e tanto, te devolvo memória de avó cuidando túmulo de avô e ensinando a rezar pela primeira vez com sentido: um Pai Nosso com sentido, uma Ave Maria com sentido e flor, muita flor. Com sentido e sentimento, saudade acesa na vela branca de trêmula chama. Te chamo para te entregar saudade também dos que vemos e que se vão, nas mãos, promessa e esperança, paciência. Essência: quando toda ela é guardada, faço embrulho com papel pardo usado, aqueles com rabisco e desenho de criança esquecido, uma conta desnecessária, jogo da velha vencido, um número de telefone que não existe mais, marcas de dedos engordurados e farelo de pão. Papel assim é quase mapa de tesouro que mostra não um caminho inteiro de fortuna, mas a história de um dia inteiro. Algo mais sagrado não há. E junto tudo que quero te dar nesse pacote. Amarro com cordão de algodão cru e nó bem cego de aguentar para além, além, além, ali, logo ali, nos meus, nos teus oitenta anos. Quando ela, a nossa menina de oito anos vai te olhar e fazer perguntas e pedir explicações. Não é preciso dizer nada. Nas mãos enrugadas, vais ter todas as respostas, todas as sementes. Ensine a plantar, a esperar, a sentir o cheiro de broto e fruta que nasce. Conte histórias, as nossas histórias. Eu só sei a metade, tu sabes todas. Ajude a saborear goiaba amarela de polpa vermelha, devagar. Mostre como acariciar caule e subir com carinho nos galhos, aproveitar os ventos nas folhas, o balanço, o céu que fica mais perto, a vida. E deixe que ela seja livre, que brinque livre, que te conte de pequenas aventuras de quintal. Assim, sempre teremos ela, a menina, a inventar e nos re-inventar. Sempre teremos ela, em flor de goiabeira. Sempre seremos ela e ela nos será.

 

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