Cynthia Torp por Rubem Penz

Pesadelo

Rubem Penz

Eu já tinha isso quando criança, sabe? Pesadelos. Um tipo em especial: quando eu chegava de uma festa, eu voltava para ela em sonho, porém de pijama. Estavam todos lá, bebendo, comendo salgadinhos, conversando, dançando, e eu no meio dos amigos, de pijama. Estranho era só eu saber ou ver ou me importar com isso. Ninguém notava que eu estava morrendo de vergonha, deslocado, quieto. Conversavam comigo e eu tentava cobrir o corpo, disfarçar a inconformidade de alguma maneira, de qualquer jeito. Aí passou o tempo e esse pesadelo nunca mais aconteceu. Se fiquei aliviado? Claro que não. Veio um bem pior: agora eu voltava para a festa e, lá outra vez, estava nu. Peladão, mesmo. Continuavam todos a minha volta, bebendo, comendo salgadinhos, conversando, dançando, e eu no meio dos amigos, tapando as partes com as mãos. Suspeitíssimo era só eu saber ou ver ou me importar com isso. Na lógica do pesadelo, era como se eu sequer tivesse saído da festa. Como assim? Ah, claro, já ia esquecendo: eu era eu e também me via, como se houvesse um eu no corpo e outro eu olhando a cena de fora, constatando toda minha vergonha, em pânico. E fazia anos que nunca mais sonhara assim. Até semana passada. Sim, sim, por isso estou aqui. A diferença é que não fui a nenhuma festa, tenho ido de casa ao trabalho e do trabalho para casa. Desta vez, no sonho, não estou de pijama ou nu: estou vestido de palhaço. De arlequim, para ser mais específico. Também tenho o rosto pintado. Volto para casa no metrô de sempre e ninguém no vagão me nota. Só eu, outra vez, estou me enxergando de fora do corpo. Morro de tristeza e ninguém dá a menor bola. Estão como ausentes. Ouço o barulho metálico das rodas nos trilhos, as luzes de fora dão um efeito estroboscópico, o vagão está fedido e sujo como de costume. Se desço? Não. O sonho termina sem ninguém chegar a qualquer estação, numa angústia crescente e duradoura. Bom, avisei que era uma loucura. E aí, dá para interpretar?

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